Reuni-me na inspiradora Biblioteca Luiz
Neves Cotrim, do Museu Histórico de Jequié, com o amigo dos “Contos áridos”, Manoel
Ribeiro, e seu colega na profissão de educador e na arte ficcional, Pedro Anselmo
Carvalho Neto, a quem fui apresentado na ocasião. A fluidez da breve prosa
daquela tarde nos deu logo a certeza de que fazemos parte de uma mesma confraria.
Cordial, Pedro me trouxe o volume de cada um dos seus três rebentos literários:
os romances “Casa pétrea de dois alpendres” (Editora Prismas) e “Plástico bolha”; e
o livro de contos “No caminho de volta”. Os dois últimos, pela Nócego. Todos
publicados em 2018.
Se Manoel Ribeiro me apresentou ao
amigo Pedro Anselmo, as páginas surpreendentes de “Plástico bolha” me revelariam o
ousado romancista Carvalho Neto. Autor inventivo na forma e na semântica, detentor
de uma escrita tão vertiginosa quanto têm sido nossos tempos atuais. E é justamente
sobre esse livro que cumpro aqui a difícil tarefa de separar a simpatia do
criador das vísceras da sua criatura, na tentativa de um feedback responsável.
A tinta incisiva de Carvalho Neto, às
vezes divertida, outras tantas melancólica, e quase sempre contundente, realça
em “Plástico bolha”, sob a ótica do seu
protagonista, as feridas incômodas da
contemporaneidade que tanto tentamos manter na invisibilidade, já que não
sabemos lidar com elas.
Tão atormentado como o mundo ao seu
redor é o relacionamento conflituoso que o dono de uma birosca dentro da movimentada
rodoviária de uma cidade fictícia (semelhante a qualquer outra que conhecemos) nutre com
as pessoas comuns/esquisitas com quem divide espaços públicos, vida íntima e a
imaginação febril. Controverso, à primeira vista cínico e intolerante, o
comerciante de cachaça e doces mantém afixado em seu comércio “Aqui se escreve
carta”: serviço que oferece, de maneira... digamos... um tanto quanto peculiar.
Geralmente sem letramento, os pobres clientes narram suas saudades, mazelas, segredos,
planos e esperanças, sob as cruéis intervenções do prestador do nobre trabalho.
Aliás, são recorrentes os explícitos manifestos de sinceridade do personagem
central diante dos interlocutores; quando menos, as sarcásticas críticas na
seara do seu pensamento fervilhante.
E a interação do protagonista sem
nome com os demais personagens(quase todos sem nome também)é só a cara da moeda
em turbilhão que se apresenta na leitura. A outra face,cunhada nas 258 páginas
que passam voando, se desdobra no lado mais profundo do narrador: em sua mente atormentada
cheia de estranhas manias e elucubrações sobre o mundo que o cerca, numa desesperada
tentativa de esbarrar consigo nas ruelas do inconsciente.
Na narrativa nervosa,em primeira pessoa,
o (in)constante fluxo de (in)consciência intercala tempo presente e reminiscências,
fatos e delírios. Entrelaça a cidade e seus anônimos transeuntes, os
passageiros passivos nos ônibus, a vizinhança, a decadência das relações
afetivas e o esquecimento dos asilados. Tudo é substância para compor o mosaico
caótico da obra, como se fora a cidade um areal coadjuvante de um mundo por
vezes surreal. “A cidade é hardcore(...)”,dá
a dica o protagonista, já nas primeiras páginas,do que vem pela frente como um rolo
compressor:“(...) é repleta de pessoas, de automóveis, de fumaça, de asfalto,
de assalto, de barulho, e de cores”.
A cidade é hardcore porque o mundo é hardcore.
Mas, também cabem nesse cenário perturbador o pop e o populacho, as extravagâncias da mass-media, o lirismoperanteo caos. Uma enxurrada
de dicotomias permeia o peso da urbe e seus arrabaldes, o
provinciano e o universal, as vísceras e o onírico. Nas constantes tensões
entre o ying e o yang,surgem referências e intertextualidades diversas. Não seria de se
estranhar, em meio a tantos símbolos estourados como as bolhinhas do plástico que nosso
anti-herói carrega sempre consigo, que o autor transitasse, tal qual um iconoclasta,na
“estação no inferno de cada um”, dialogando com Rimbaud, Byron, Baudelaire,
Waly Salomão, Chacal, Leminski...
Armado de autoridade efêmera atrás do
seu balcão, o protagonista sem nome, “homem que adoça e embriaga” seus
clientes, vive a vender pequenas doses de vício e de ilusão, escrevendo cartas
alheias, ao tempo em que tenta escrever a própria vida. É a busca incessante de
um anônimo entre anônimos, capaz de imprimir no outro, arbitrária e
invasivamente, seus afetos e desafetos cativos. A exemplo do cego e albino
Balbino—único personagem da trama a possuir nome próprio; ou melhor, um codinome
imaginado pelo personagem central — que, de modo estranho, se multiplica vertiginosamente
em clones espalhados pelas entranhas da cidade.
Pontuados pelo que parece insensatez,
incongruência, períodos quase sempre curtos se atropelam. Alternamo ritmo nervoso
com momentos de puro lirismo, esses evidenciados principalmente nos capítulos
intitulados “no tempo da poesia”.A ausência de letras maiúsculas na escrita inusitada
parece gritar a insubordinação do protagonista às convenções do establishment, bem como realça sua
insignificância diante da crueza da vida real e do delírio. A tinta releva excessos
de trocadilhos,sem vergonha, culpa nem pedidos de desculpas. Também aliterações,
inter genericidade e referências externas, as quais avalizam o perfil atormentado,
sensível e criativo do protagonista. Mas nada disso é suficiente para
fragilizar o enredo não-linear muito bem construído pelo autor consciente das
normas que subverte em terreno intelectualmente pedregoso. O protagonista segue
seu rumo incerto a nos arrastar —nós leitores— por uma bonita história tão
absurda quanto verossímil.
“Plástico bolha” são alfinetadas no
comodismo aninhado no sofá da sala de estar decadente do novíssimo mundo. São páginas
povoadas por seres inomináveis que preferiríamos abandonar sob o tapete, se não
corrêssemos o risco de sermos,nós mesmos, varridos para lá também. Gentes em convívio
necessário perpassadas por sensações de atração e repulsão, por instintos imediatos
que se alternam com reflexões transtornadas e planos ardis.Sob várias camadas de diálogos(e
monólogos internos),linhas e entrelinhas abaixo do bem e do mal permeiam a opressão
e o revanchismo, caridade e crueldade, medo e ódio... a solidão e a busca.
O vazio do afeto e da compreensão humana
protagoniza essa saga (in)consciente rumo à catarse potencial na psique do
personagem central, bem como na catarse possível da experiência de nós leitores por
vias do desfecho surpreendente dessa bela e incômoda história,paradoxalmente
estranha e comum, que bem poderia ser a nossa própria vida.
Por Júlio
Lucas
(Poeta e cronista.
Presidente da Academia de Letras de Jequié e Curador do Museu Histórico de
Jequié)